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Conto publicado no Monolito - Coletivo Literário


Ao Vencedor as Batatas


I

Durante a segunda guerra mundial a batata era um dos poucos alimentos que refugiados ou prisioneiros dos campos de concentração conseguiam comer, as vezes encontrando restos e noutras comprando no mercado negro. Resistente ao frio e até mesmo a situações mínimas de saneamento, esse alimento salvou, ou adiou a morte de muitos. Noutras partes da guerra, quando tropas ficavam sem alimentos, soldados retiravam as batatas do solo e as comiam cruas. Ainda em tempo e contexto de guerra, o caríssimo filósofo Quincas Borba anunciou em seu manifesto o Humanitismo: – Ao vencedor as batatas!

II

Na Grécia durante os anos 20 do século passado entre várias vanguardas e correntes literárias, as batatas também obtiveram certo protagonismo diante de conflitos que resultaram numa morte. O escritor e teórico Meliteu, depois de um duelo com seu rival das ideias Pisandro Amintas, que antes fora seu discípulo. Meliteu defendia que a construção literária é como a massa de uma batata espremida, o que passa do tubérculo para fora do espremedor é a história que deve ser contata, limpa de sujeiras ou partes menores sem importância que ficam presas no objeto. Em contra-partida, Pisandro, passou a pregar que não! A matéria prima da literatura e em especial dos romances, consiste justamente no que sobra da batata presa ao espremedor, aquilo é a obra prima, é a essência, sem o excesso e sem o banal que foi posto para fora. Depois de inúmeras discussões cada vez mais calorosas, certa vez Pisandro mesmo certo de suas convicções sentiu-se vencido e humilhado diante da plateia de estudantes e aspirantes a escritores. Esperou Meliteu deixar o espaço acadêmico da Hellenic Open University, o seguiu em seu trajeto de volta pra casa que fazia a pé todos os dias, e depois de 4 km já na avenida Akti Dimeon onde Meliteu tinha um belíssimo apartamento, um golpe certeiro o pôs desacordado, em seguida o afogou a beira do mar jônico.

III

Durante aquela sexta feira onde mais uma noite de hot-dog iria acontecer, o escritor João Catapulta olhava para os ingredientes dispostos na mesa, salsicha fervida, molho de tomate, maionese, ketchup picante e mostarda. Batata palha e batata cozida quase no ponto de virar purê. Até esse momento de sua vida tinham sido escritos 3 livros de contos publicados de forma independente, tiragem cômica de 50, 30 e 20 exemplares que em sua maioria foram dados a parentes e amigos que por sua vez os repassaram a sebos ou prateleiras antigas cheia de papéis ou outros livros que como aqueles que João escreveu, jamais seriam lidos.

Não exatamente em segredo mas sem nenhum comentário ou pedido de leitura ele terminara o seu terceiro romance naquela noite. Durante os anos em que esteve em silêncio juntos desses projetos, estava convencido de seu papel como escritor que como tal não necessita ser lido, afinal de contas, escritores escrevem e ponto final. Antes do terceiro cachorro quente daquela noite irrompeu o silêncio e reforçou sua aparente paz e certeza com um mantra: Escreva… Escreva apenas e não se preocupe…

IV

Mas tal convicção era frágil e mentirosa, terminou por pensar que, se os seus textos não despertavam atenção de exatamente ninguém, algum fato novo ao redor deles o faria. Talvez um crime ou um ato terrorista fosse o prenúncio do sucesso comercial que as editoras aproveitariam muito bem. PRÉ-VENDA DO LIVRO “CONFISSÕES DE UM ESCRITOR TERRORISTA” anunciaria o banner nas redes sociais e vitrines das grandes livrarias.

Não que fosse um santo, pois em certos momentos tinha vontade de construir bombas (quem não tem), mas não seria por esse ato que João queria ser lembrado ou mesmo lido. Talvez algo mais poético como um sacrifício, mas o que? Pensava… enquanto sem perceber partia para o quarto cachorro quinto, decretando ali num novo recorde pessoal… Se seus textos não eram dignos de leitura, talvez a dificuldade, os obstáculos físicos para escrever qualquer texto por pior que fosse, dignificassem sua literatura. E a essa altura tanto fazia, pena, misericórdia, ou até mesmo uma leitura por piedade… O importante era ser lido…

V

Quase num salto da cadeira pegou o espremedor de batatas largado na pia entre outras louças sujas, apoiou dois dedos formando uma ponte sobre o vão onde normalmente se colocam as batatas. Pressionou com toda força a parte de cima do objeto contra os dedos. Apesar da dor não teve nenhum sucesso, tirou um dedo e aplicou a mesma força que antes, CLACK! Partiu ao meio o dedo indicador, na sequência ergueu o dedo médio que mais fino foi rapidamente quebrado enquanto era pressionado pelo espremedor de batatas. O anular foi mais fácil ainda, espremeu o dedo no aparelho até o fim, sentiu uma pequena fratura na ponta do dedo, ergueu a haste do espremedor e mais dois golpes, no segundo movimento conseguiu quebrar o osso do metacarpo e parte do osso hamato. Foi o que descobriu mais tarde no hospital.

VI

Recusou-se a fazer fisioterapia, ou quando compareceu as sessões sabotava cada movimento. Já não sentia mais dores e contemplava sua obra prima, separou a radiografia pois aquela seria a imagem da capa de seu livro, sem nome, apenas a imagem do raio-x dos ossos da mão estilhaçados. Talvez usar acetato na impressão de uma luva para o livro, pensava graficamente em seu projeto literário.

Destro com a mão e canhoto no pé, sabia-se um erro desde sempre, agora teria que consertar isso e todos os anos de isolamento de suas palavras numa ilha deserta, nada paradisíaca e no geral nem um pouco interessante.

A mão esquerda que antes se resumia ao uso do dedo indicador, agora precisaria deslizar sobre o teclado enquanto na mão direita tinha apenas o dedão e o dedo mindinho com movimentos possíveis, com muito esforço conseguiam alcançar e pressionar alguma tecla.

VII

Num ritmo árduo e intenso durante três meses, concluiu o primeiro capítulo. Trabalhava agora 14 a 16 horas diárias sobre o livro. No quinto mês a produção teve um crescimento impressionante, 9 capítulos estavam escritos, mais de cento e oitenta páginas, 70% do livro pronto. No sexto mês tudo estava normal, voltou a escrever com rapidez nas redes sociais, em tablets ou smartphones.

O fim do livro estava próximo, e a distância para esse lugar diminuía cada vez mais rápido. Foi quando se deu conta: Estava escrevendo normalmente, mais rápido do que antes até. Sim, em partes pela disciplina mas principalmente por não existir naquele corpo, naquelas mãos, mais nenhum obstáculo. Os dedos continuavam tortos mas nunca mais teria mérito por transpor aquela dificuldade que nem existia mais, pouco importava quem ou como escrevia aquelas palavras, as atenções agora voltariam exclusivamente para cada frase, construção de diálogos e personagens, trama, foco narrativo, tempo e espaço… Sem maiores desculpas para o vazio que poderia morar por de trás de cada um desses elementos. Escrever para ele deixou de ser uma profissão de fé fazia tempo, agora restava apenas teimosia ou talvez um ego gigantesco que o impelia aquele caminho de ser reconhecido como escritor de um jeito ou de outro.

VIII

De volta as sextas feiras de cachorro quente, depois do sétimo lanche (recorde destruído novamente) CLACK CLOCKT CLECKCOUT… Começou pelo dedo indicador da mão esquerda, e foi em seguida com violência para o dedão que era tão ágil e prestativo naquele sistema de digitação que ele desenvolveu sem querer. Escrever era um sentimento montanhoso que vivia em seu peito, um maremoto, condição e movimento natural de suas mãos. Mas sabia, jamais uma dádiva, e sim uma maldição que a todo custo ele tentaria bloquear, e dessa batalha o que sobrasse produzido por suas mãos seria arte, LITERATURA… LITERATURA… LITERATURA… Gritava enquanto mais uma vez era levado ao pronto socorro.


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