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Quarto desafio do Coletivo Monolito  , dessa vez a história deveria ter um churrasco de rena e ser contada por uma criança ou ter uma criança no mesmo ambiente. Essa foi minha colaboração no blog poderá ver o texto de outros autores do coletivo. Coletivo Monolito

Iktsuarpok*


A aldeia de Nujalik avançara cerca de 3 dias a sua frente. Iam cada vez mais ao norte, tentando manter-se a uma distância segura da influência dos homens brancos, que cada vez mais modificavam a vida e os costumes do povo Inuíte. Baleeiros e pescadores que chegavam nas regiões árticas do Canadá, em troca de peles de animais ofereciam farinha e pólvora, contudo, o xamã Yuk não sentia-se tranquilo com aquela presença, mesmo através de acordos e negociações, Yuk enxergava ainda alguma ameaça por trás de costumes tão estranhos daquele povo de pele branca e grandes olhos. Armas de fogo, crucifixos e construções grandiosas as quais davam o nome de igrejas assustavam o xamã.

Deixada para trás, Nujalik estava agora entre dois mundos, com pouco mais de 10 anos deveria fazer jus ao seu nome em homenagem a deusa da caça terrestre. Somente dessa forma poderia sobreviver naquele limbo de frio e solidão. Era pequena demais seguir os passos de seu povo, por outro lado morria de medo das histórias que contavam sobre o povo das cidades que cada vez mais cresciam no horizonte do ártico. Diziam que aqueles homens colocavam fogo em pessoas que eram diferentes deles e Nujalik, sabia, era bem diferente de todas aquelas pessoas.

Protegida com uma grossa camada de roupa feita com pele de foca e revestida com pelagem de urso, Nujalik não sofria tanto com o frio de -40 graus, mas sentia fome e o corpo precisava de alimento para continuar produzindo calor.

Enquanto improvisava um abrigo cavando a neve buscando partes mais próximas da terra, olhava para as marcas deixadas pela sua família. Cães, trenós e passos de seu povo que já se apagavam abaixo da neve que voltava a cair. Agora mais nada indicava o caminho, apenas a escuridão branca indicava dois caminhos opostos, impossíveis de serem seguidos.

A escuridão permanecia cercando Nujalik, de tempos em tempos o silêncio era interrompido pelo barulho do vento soprando rasteiro, movimentando árvores velhas e secas. Pequenos animais se movimentavam próximo a ela, curiosos e com medo, cascos de manadas de Caribus passavam a certa distância fazendo tremer o solo. Não muito mais distante do que isso o uivo da matilha de lobos anunciava que aquela região não seria segura para mais ninguém.

Nujalik foi mais ao fundo de sua toca, agarrou a pequena lança feita com ossos de animais e concentrou-se em escutar tudo o que acontecia, tudo o que se aproximava dela. Não pretendia por nada sair daquele lugar, qualquer barulho reafirmaria essa certeza e necessidade de segurança.

De repente o silêncio tomou conta de tudo lá fora, permanecendo assim por mais alguns instantes. Diante disso era impossível ficar ali parada sem saber o que acontecia lá fora. Vagarosamente Nujalik foi se movimentando, num pacto com o silêncio que rodeava aquelas terras, sabendo que qualquer movimento, qualquer som que ela emitisse ou provocasse, seria como o urro de um grande urso devido a calmaria lá fora.

Colocou a cabeça pra fora da toca, feito um filhote de foca, girou 360 graus com a lança sempre sempre bem segura nas pequenas mãos, prontas para um golpe certeiro e mortal. O vento começou a soprar novamente mas nenhum animal parecia estar por perto, não mais, num raio de 3 quilômetros apenas Nujalik e sua lança.

Um som assustador veio de dentro da toca, grave feito um terremoto, como se o chão fosse ser partido ao meio ou grandes rochas rolassem das montanhas. Mas era apenas o estômago de Nujalik e a fome que lhe enfraquecia e desesperava ao mesmo tempo.

Atenta novamente ao seu redor, novamente no silêncio branco que lhe aprisionava, viu um conjunto de luzes que pareciam flutuar rente ao chão. Luzes douradas, verdes, vermelhas e prateadas. As luzes pareciam trazer dezenas de sininhos presos a elas, sacolejando junto. O chão tremeu novamente, Nujakik reconheceu o som de um grupo de Caribus que vinha junta daquelas luzes, dos sinos e de uma volumosa figura na frente do trenó. Uma longa barba branca, roupa vermelha e a voz grossa controlando os animais:

Heeeia!!!!! Dasher, Dancer, Prancer!!!
Isso mesmo Vixen, Comet, forçaaaaaa!

Por poucos segundos aquela visão fez os olhos e o corpo de Nujalik permanecerem petrificados. Soltou o ar preso nos pulmões quando o trenó, Caribus e aquele gigante vermelho iam se aproximando de seu esconderijo. Segurou firme sua lança e a apoiou no chão lhe servindo de impulso para sair da toca. Arqueou as costas e foi correndo paralelamente ao trenó, escondida entre pequenas árvores. Um dos bichos percebeu a presença de Nujalik, e emitiu um som de alerta avisando aos outros do perigo.

– Heeeia!!!!! Gritou mais uma vez o homem da barba branca.
Enquanto Nujalik arremessou com força sua lança, acertando e atravessando o corpo de um dos bichos atrelado ao trenó.
– Donner!!! Gritou o homem de cima do veículo. Enquanto o bicho dobrava as patas caindo sem vida no chão, todos os outros iam se atropelando e provocando um empilhamento entre bichos, trenó, homem, luzes e sinos, capotando várias vezes sobre a neve branca e os olhos cerrados e destemidos de Nujalik.

Abençoada era aquela noite, a partir dali nem frio e tão pouco fome fariam parte de seus dias…

* Iktsuarpok – Palavra que vem do inuíte (região do ),
Palavra usada para descrever a impaciência proporcionada pela espera de alguém e que te leva a verificar o lado de fora da casa o tempo todo.


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