Literatura - Do Som ao Impacto

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Capa do Livro Do Som ao IMpacto

Trecho do conto "Quatorze Palavras Contadas" do livro "Do Som ao Impacto", publicado no Clube de Autores.


Escrever uma carta para minha família era apenas a transposição de algum texto para o papel. Aquela próxima mensagem tinha por objetivo ser enxuta, direta, ainda mais por
tratar-se da morte de meu pai. Há tempos que eu não o via, um tanto culpado e ferido,
mas, no fnal, achava alguma justifcativa para minha distância. Os meus erros e medos eram todos causadores deste vazio dos últimos três anos. Portanto a manifestação mais viva de sua presença foi a carta de sua morte.

O velho estava morto, mas a sua influência ainda se fazia naquelas quatorze palavras, contando os artigos: “O Velho está morto. Seu enterro será amanhã no Araçá. Nós o velaremos hoje”. É triste não estar triste, é triste receber e compreender as
coisas como eu andava aceitando tudo, nenhuma reivindicação contra os adeuses, o impossível e incerto, eu nada sentia e estava triste por isso.

É por regras de não amar e naturezas agrestes que eu sou a antítese de tudo que esperam de minha família ou do que vem dela. Eu sou aquele emotivo bem próximo do bêbado, que tem o choro condicionado pelo choro alheio, ou por certas músicas e finais de filme, dono de um sentimentalismo barato, quase brega e em outros momentos nobre.
Diz-se que um abraço quebra barreiras, dá maior ênfase às mensagens quando as palavras ou qualquer outra manifestação são inoportunas, longa demais. Acredito no poder terapêutico deste acontecimento entre duas pessoas. Eu sou aquele que prolonga o ato e segura o outro um tempo a mais entre os braços, controlo também a intensidade, sou eu quem surpreende e ultrapassa o aperto de mão a união do peito, ao entrelaço.

Eu era particular de um amor circuncisado, que tinha como razão a persistência genética e tradicional. Arrumei minhas coisas. Eram já nove horas da noite, tempo frio e seco. A
tia Dora esperava-me e logo que me viu foi dizendo:
- Será amanhã às nove horas. Não podia deixá-lo sozinho. Aqui está a papelada. Tudo já foi providenciado. A família dos Teixeira nos cedeu um jazigo. Minhas costas doem e estou sem meu remédio, preciso ir...

Não precisei abrir a boca, apanhei a papelada. Naquela noite, pelo menos até ali, só mesmo meu pai resolveu morrer. Nos olhos de minha tia por trás de um cansaço imediatamente percebido, um alívio parecia brotar dependendo apenas da próxima noite de sono.
- Por que você não soube respeitar o fato de eu não ser a sua repetição - dizia eu agora debruçado sobre o corpo. A pele fria de um morto sempre assusta. É aquela temperatura desconhecida, inesperada, um frio úmido, os algodões em seu rosto espantavam qualquer lembrança ou persistência vital. Eu não tinha mesmo nenhuma dessas lembranças, a não ser aqueles abraços oblíquos e desconfortantes...


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